Wednesday, November 6, 2024

Lisboa é cara, e não é para nós

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Recebo regularmente, por configuração automática do telefone, notícias do portal The Portugal News, uma página para expats e nómadas digitais que vivem em Portugal ou estão interessados em aqui “investir”. Ali, tenho acesso de forma mais frequente do que noutros canais a notícias sobre o mercado imobiliário, sítios mais trendy para cama-e-mesa ou dados que digam respeito à comunidade expat em Portugal – expat é jargão para “imigrante rico”.

O portal publica em inglês (mas também holandês, alemão, francês, sueco, espanhol, italiano, russo, romeno, turco e chinês) notícias de outras fontes, nacionais ou estrangeiras, e tem uma edição em papel. É lido, diz no site, por cerca de 400 mil pessoas/semana e cobre temas como cripto, vistos gold, imobiliário e alojamento local, golf, legislação portuguesa para expats/nómadas, mas também se chove, troveja ou faz sol, ou quais as praias com bandeira azul. É apoiado pelo IEFP, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve e o Portugal 2030 que aplica fundos da Comissão Europeia, e o seu director (que se auto-denomina CEO), Chris Sainty, é o ex-embaixador britânico em Portugal.

Numa entrevista a Trisha Goddard (apresentadora britânica famosa pelos programas da manhã, semelhante a Goucha ou Cristina), o CEO do Portugal News, que aparece junto ao presidente da câmara de Lisboa, Carlos Moedas, na recente edição em papel, começa por explicar que foi a indústria do turismo que “salvou Portugal” durante os anos da intervenção do FMI/BCE: “Se não fosse o turismo, Portugal estaria numa muito pior posição que está hoje.” É por isso que, diz, discussões sobre “sobre-turismo” (overturism), como se tem visto no Estado espanhol, onde tem havido cada vez mais protestos das populações contra a turistificação, não fazem sentido em Portugal.

Diz Sainty que aqui não se vão ver protestos contra o turismo porque os portugueses são diferentes: “Ainda não vimos pessoas nas ruas a manifestarem-se e a mostrarem hostilidade aberta contra os turistas. Vivo aqui há cinco anos e, francamente, não vejo isso acontecer em Portugal, porque os portugueses são um povo tão acolhedor, parece um cliché, mas é mesmo verdade, têm muito orgulho no facto de as pessoas quererem vir e desfrutar do seu país.”

Pobres, mas felizes porque muito agradecidos. Tão pobres, explica o ex-embaixador, que o turismo tem colocado uma pressão “astronómica” sobre o mercado imobiliário, seja através da conversão de habitação em Alojamentos Locais ou hotéis, seja na forma como a dinâmica hoteleira estimulou igualmente fundos de investimento a adquirir quarteirões inteiros, mesmo que devolutos, condicionando o preço do mercado da habitação através da sobre-procura e da especulação. “Isto significa que as pessoas já não podem, especialmente os jovens profissionais com salários médios portugueses, imaginar que podem viver perto do centro das cidades onde costumavam viver”, diz aos espectadores britânicos.

Ao Portugal News, Moedas vende a propaganda do costume, de que a solução é construir mais casas. Tem resultado? Vejamos na imprensa: “Construção em Portugal: produção cresce 7,5% para 20 mil milhões. Edificação residencial cresceu 3% durante 2023 face ao ano anterior. Número de fogos concluídos mantém tendência ascendente.” (Idealista, Junho) “Preços da habitação aceleram em 14 dos 24 municípios mais populosos. Preço mediano de habitação atingiu 1.644 euros por metro quadrado no primeiro trimestre deste ano, um aumento de 5% face ao período homólogo de 2023.” (Público, Julho) Mais casas novas, sim, mas para quem? Com que salários?

Explica Chris Sainty que o objectivo de Carlos Moedas é “ser capaz de demonstrar às pessoas que vivem em Lisboa e nos arredores que as ruas estão limpas, que as infra-estruturas estão a melhorar e que novas atracções serão construídas e implementadas, não apenas para os turistas, mas também para os residentes. Que a cidade está a tornar-se um lugar melhor por causa do turismo”.

Por isso a entrevista a Carlos Moedas é tão simbólica. Moedas explica porque subiu a taxa turística (1 euro/noite até 2019, depois aumentou para 2 euros e agora para 4 euros) mas não explica onde é que ele, e Fernando Medina antes dele, andou a gastá-la. Foram 40 milhões em 2024 (1 milhão dos cruzeiros). Em entrevista ao Expresso em Fevereiro, Moedas disse: “Preciso desses recursos para limpar a cidade”, reconhecendo contudo que esse valor é “marginal” no orçamento da câmara (1,3 mil milhões de euros). Cito do Expresso: “Moedas enfatizou também os melhoramentos que Lisboa tem vindo a fazer com o dinheiro das taxas [quais?], e deu o exemplo do Museu do Tesouro Real, que ganhou recentemente um prémio em Itália. ‘Como é que isto aconteceu? Com o dinheiro das taxas, foram os turistas que pagaram aquele museu.’”

Ora bem, excelente exemplo de como a taxa turística serviu para servir o turismo e os turistas com a construção de uma infraestrutura “para inglês ver”, e não para os residentes em Lisboa, que têm assistido a uma degradação sistemática da cidade – na recolha do lixo, na mobilidade, na recuperação dos bairros sob responsabilidade da Câmara, na habitação acessível inexistente, nos arruamentos, na falta iluminação pública.

As políticas da CML, com o turismo à cabeça como a galinha dos ovos de ouro da capital, têm sido o motor de uma aceleração de profundas divisões de classe, expulsando residentes, trabalhadores, classe média da cidade, em defesa de um modelo extractivista, de rotação rápida e de consumo imediato. Romperam-se laços, comunidades, redes, rebentaram com o comércio local, com o movimento associativo, com aquilo com que se tece uma cidade. Aliado à liberalização dos vistos gold, dos Residentes Não Habituais e dos investimentos imobiliários, Lisboa tornou-se impossível de se viver com os salários dos portugueses. É cara e não é para nós.

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Medina, presidente da CML, dizia em 2016: “Não sei o que é ter turistas a mais”; “Esse conceito não existe, não tem sentido” (Negócios). Moedas alertou para o “discurso perigoso” associado ao excesso de turistas em Lisboa. “Não há turismo a mais. Temos 546 mil lisboetas, 35 mil pessoas a entrar todos os dias, não se pode comparar a Veneza”, disse em Fevereiro (Expresso).

Não haja dúvidas de que a governação de António Costa e Fernando Medina abriu caminho à governação de Carlos Moedas. Ele é, no fundo, o seu herdeiro mais completo: o corta-fitas que vem finalizar o processo de neoliberalização da cidade que levou, inclusive, a uma transformação da sua própria base eleitoral (e de classe).

No Público, o economista Ricardo Paes Mamede perguntava “quando vamos assumir que o turismo se tornou um problema?” Não é já a questão do diagnóstico que está feito: pressão sobre habitação, recursos públicos, salários miseráveis e exploração laboral apesar dos números positivos para apresentação de estatísticas imediatas em powerpoints para incautos. São também os “efeitos nefastos a nível estrutural”. O turismo estimula “a actividade económica e o emprego no curto prazo” mas “não tem o mesmo potencial de desenvolvimento tecnológico e de aumento da produtividade que o sector industrial. Ao favorecer a desindustrialização das economias locais, a sobre-especialização no turismo põe assim em causa o desenvolvimento da economia a prazo”.

É por isso que as palavras do ex-embaixador britânico sobre o turismo poder “fazer de Portugal um sítio mais confortável e agradável para os próprios portugueses viverem” caem em saco roto: as transformações que Lisboa assistiu nos últimos 20 anos são de tal gravidade que ela não é já uma cidade “confortável e agradável” para “os lisboetas”. Só os CEO dos Portugal News é que vão poder nela viver.

(Autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.) 

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